sexta-feira, 10 de junho de 2011

<<< He not busy being born is busy dying >>>


"And if my thought-dreams could be seen
They’d probably put my head in a guillotine
But it’s alright, Ma, it’s life, and life only"

Bob Dylan e Allen Ginsberg diante do túmulo de Jack Kerouac: que bela imagem! São três dos centro-avantes mais artilheiros que já marcaram gols-de-placa nos campos verdejantes da literatura norte-americana, balançando as redes com seus certeiros pontapés de poesia beatnik. Mestres de uivos místicos, protestos líricos, rupturas contra-culturais, sugestões de novas vias. Três poetas audazes que viveram a dar dribles desconcertantes pra cima dos cintura-dura repletos de autoridade.

Metáforas futebolísticas infames à parte, queria hoje "viajar" um pouco sobre um mistério que me intriga: Bob Dylan e seu impacto cultural tão tremendo. Ainda não li nem um terço dos livros que estão sendo publicados sobre ele (com destaque para a biografia do Howard Sounes e a do Greil Marcus), mas me parece já assentado que, dentre os compositores da música popular, Dylan talvez seja o único cujo domínio sobre o Verbo e dom poético é realmente descomunal em relação ao "resto". (Heterodoxa definição do gênio: aquele que transforma outros artistas em resto.) Eu mesmo, que me encanto há anos com o poder do verbo dylanesco - especialmente da fase que vai de Freewheelin' a Desire (1963 a 1976), com destaque supremo para aquela magnífica Trilogia Bringin' It All Back Home - Highway 61 - Blonde on Blonde - não acharia nada absurdo que ele fosse laureado com um Nobel de Literatura (ao qual, aliás, já foi indicado algumas vezes).



Seu poder, me parece, emana sobretudo de sua poesia. A voz anasalada (e hoje já embargada e quase estragada) do velho Zimmermann, com seus 70 anos de idade completados neste 2011, não é lá grande coisa quando comparada à de um Sinatra ou uma Ella Fitzgerald. Suas melodias tampouco eram tão imediatamente memoráveis quanto as de Lennon & McCartney. Muitos tinham mais presença de palco que ele, eram ou mais performáticos, ou mais coloridos, ou mais brilhantes de glitter, ou mais esfarrapados e vira-latas. Bowie era bem mais excêntrico, Iggy era bem mais selvagem, Springsteen bem mais enérgico... E ele? O que é que Dylan tinha demais? O que o distinguia de todos os seus contemporâneos? Por que foi entronado como um ícone cultural desse tamanhão? Como pôde ser transformado em mito sem nem precisar da morte, a grande mitificadora? 

Não conheço resposta melhor que esta: foi a poesia. Difícil acreditar que a poesia possa tudo isso? Mas quem foi o miserável que inventou a mentira abominável de que a poesia é algo... impotente? Que ideia pouquíssimo poética, digna de burocratas! Os maiores poetas são aqueles que, justamente, acreditam na potência da poesia. Sabem que palavra não é uma coisa à toa, uma bestice sem relevância, um punhado de fonemas que se dissolve ao vento. Sabem que palavras mudam consciências, animam sentimentos, despertam entusiasmos, apontam estrelas. Sabem que falar é agir, e que a palavra cantada (melodizada, rimada e ritmada) talvez haja com ainda maior eficácia e impacto do que aquela aprisionada no papel. O grande poeta sabe que discursos movem e comovem. Que são instrumentos de transformação (inclusive social, política, cultural). Que não há revolução silenciosa.


Lembremos as palavras de Leminski, talvez o poeta brazuca mais próximo dos beatniks, que diz muito melhor do que eu saberia aquilo que estou tentando expressar: "não sei se todos os povos amam seus cientistas, mas todos os povos amam seu poetas", diz o lírico curitibano. Pensem no amor dos gregos por Homero, ou dos romanos por Virgílio, dos italianos por Dante, dos ingleses por Shakespeare, ou dos franceses por Hugo... (o funeral de Victor Hugo em Paris,1885, com 2 milhões de parisienses nas ruas: que prova mais comovente do amor dos povos por seus poetas!). "No Brasil, Vinícius de Moraes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento e seus parceiros: os poetas são amados por milhões. Por que os povos amam seus poetas? É porque os povos precisam disso: os poetas dizem coisas que as pessoas precisam que sejam ditas. O poeta não é um ser de luxo, não é uma excrescência ornamental da sociedade... Ele é uma necessidade orgânica de uma sociedade! Ela precisa da loucura deles para respirar: é através da loucura dos poetas, da ruptura que eles representam, que a sociedade respira!" Muito bem dito, Leminski!

O funeral de Victor Hugo, Paris, 1885. 2 milhões de franceses nas ruas.

Impossível explicar o fenômeno Dylan sem isto: o amor dos povos pelos poetas. Dylan não foi somente um leal aprendiz de Hank Williams, Woody Guthrie, Leadbelly, Robert Johnson... ele bebeu, e em doses aparentemente dignas de “porre”, em John Steinbeck, F. Scott Fitzgerald, Herman Melville, Ezra Pound, Walt Whitman, T.S. Eliot, Arthur Rimbaud... Foi um experimentador lingüístico de marca maior, quase o equivalente de James Joyce ou o William Faulkner na música (vejam "It's Allright Ma", o Finnegan's Wake do pop!). Sabia entregar-se ao fluxo-de-consciência e lançar cacos de imagens poéticas desconexas ao papel; flertava com o surrealismo e o Dadá (“Ballad for a Thin Man”); sabia escrever biblicamente como um Milton (“Gates of Eden”), mas também sabia ser pé-no-chão e indignado, feito um Brecht norte-americano (“Blowin' in The End”, “A Pawn In Their Game”, “The Times They Are A-Changin'"...). Dylan é o tipo de escritor que não tinha medo de tarântulas, não ia com a cara dos senhores da guerra e não era profeta de nenhuma verdade eterna, mas somente da inelutável mudança.

O grande poeta não é aquele cujo livro está repleto de bonitezas, versinhos agradáveis, flores de plástico; o grande poeta é aquele cujas palavras estão na boca do povo (ou na goela, engasgados; ou no coração, ainda vagas e disformes, carentes de ordem e ímpeto...). É aquele que expressa aquilo que multidões gostariam de dizer mas não conseguem (por não saberem como formular, por não terem voz para bradar...). Um grande verso poético é aquele cuja mensagem ou imagem é tão memorável que torna-se parte de nosso ser, incorporado ao nosso cérebro, inserido no nosso repertório de sentido, nosso cardápio de encantos... Pois a vida só é vivível se pudermos enxergar nela alguma beleza. O grande poeta faz com que sintamos a beleza da vida, que talvez ele mesmo tenha ali posto. Talvez a tenha simplesmente encontrado, como uma moedinha de ouro perdida entre as rachaduras da calçada. Vai ver uma grande poeta é simplesmente alguém que se dá conta de uma beleza invisível, que os outros passam ao largo sem ver, cegos ao seu feitiço. O poeta não está indo a lugar algum, mas nos ensinando a estarmos onde já estamos: professor da arte de estar presente à presença presente de tudo, ele não mais vê o aqui-e-agora como mero chão de passagem. O presente, para ele, torna-se campo de pouso e palco de tudo.

 * * * * * *

(Abaixo: a trilha sonora de I'm Not There, o filme de Todd Haynes, que traz canções de Dylan interpretadas por muita gente bacana. Ouçam no talo e atentos às palavras e seus encantos! Cheers!)

  1. Eddie Vedder & The Million Dollar Bashers – All Along The Watchtower
  2. Sonic Youth – I’m Not There
  3. Jim James & Calexico – Goin’ To Acapulco
  4. Richie Havens – Tombstone Blues
  5. Stephen Malkmus & The Million Dollar Bashers – Ballad Of A Thin Man
  6. Cat Power – Stuck Inside Of Mobile With The Memphis Blues Again
  7. John Doe – Pressing On
  8. Yo La Tengo – Fourth Time Around
  9. Iron & Wine & Calexico – Dark Eyes
  10. Karen O & The Million Dollar Bashers – Highway 61 Revisited
  11. Roger McGuinn & Calexico – One More Cup Of Coffee
  12. Mason Jennings – The Lonesome Death Of Hattie Carroll
  13. Los Lobos – Billy 1
  14. Jeff Tweedy – Simple Twist Of Fate
  15. Mark Lanegan – Man In The Long Black Coat
  16. Willie Nelson & Calexico – Señor (Tales Of Yankee Power)

    DOWNLOAD CD 1
    : http://www.mediafire.com/?mjkpc7665s01qxo


  17. Mira Billotte – As I Went Out One Morning
  18. Stephen Malkmus & Lee Ranaldo – Can’t Leave Her Behind
  19. Sufjan Stevens – Ring Them Bells
  20. Charlotte Gainsbourg & Calexico – Just Like A Woman
  21. Jack Johnson – Mama, You’ve Been On My Mind / A Fraction Of Last Thoughts On Woody Guthrie
  22. Yo La Tengo – I Wanna Be Your Lover
  23. Glen Hansard & Markéta Irglová – You Ain’t Goin’ Nowhere
  24. The Hold Steady – Can You Please Crawl Out Your Window?
  25. Ramblin’ Jack Elliott – Just Like Tom Thumb’s Blues
  26. The Black Keys – Wicked Messenger
  27. Tom Verlaine & The Million Dollar Bashers – Cold Irons Bound
  28. Mason Jennings – The Times They Are A-Changin’
  29. Stephen Malkmus & The Million Dollar Bashers – Maggie’s Farm
  30. Marcus Carl Franklin – When The Ship Comes In
  31. Bob Forrest – Moonshiner
  32. John Doe – I Dreamed I Saw St. Augustine
  33. Antony & The Johnsons – Knockin’ On Heaven’s Door
  34. Bob Dylan With The Band – I’m Not There

    DOWNLOAD CD 2
    : http://www.mediafire.com/?g8xwnkmtwf2ll2b


6 comentários:

Antônio LaCarne disse...

postagem sensacional. sou grande fã do ginsberg e pricipalmente um amante da poesia.

parabéns pelo seu blog. abraço!

Fabricio C. Boppré disse...

Post fantástico!

Diego Mascate disse...

Um dia quero ter esse blog na minha estante.

Unknown disse...

Valeu demais, galera! =)
Voltem sempre.

Juliana Marra disse...

Edu, Edu, vc foi a melhor coisa que "aconteceu" pra gente ler nas paragens do Goyaz... feliz destino esse! texto lindo.
bejo

Vernardo Santana disse...

Rapaz, sensacional!