quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

"...someday our ocean will find its shore..."


Muitas vezes um artista não é o melhor juiz de seu próprio valor. Seja por uma tendência ancestral para a auto-depreciação, seja por uma personalidade marcada por uma insuperável timidez ou uma auto-estima vacilante, seja por uma auto-crítica demasiado corrosiva, o criador pode ruborizar perante suas criaturas, as mesmas que outros podem considerar... preciosíssimas pérolas da criatividade e da sensibilidade humanas. O extremo oposto do artista megalômano, que se acha a última bolacha do pacote, é o artista que cria na angústia de sentir-se desvalido e indigno: Franz Kafka, por exemplo, que pede (ó delírios de auto-mutilação!) à Max Brod que queime toda sua obra, que livre a humanidade desta praga que são seus livros que tantos de nós amamos! (Nossa sorte, é claro, foi que Brod desobedeceu ao amigo e Kafka hoje está entre nós, ao invés de ter sido reduzido à cinzas!)

O bardo inglês Nick Drake, notório por seu extremado stage fright (que o fazia travar e entrar em pânico diante da perspectiva de se apresentar ao vivo), finado tragicamente com uma overdose de anti-depressivos com meros 26 anos de idade, padeceu por toda sua brevíssima vida com os males da falta de reconhecimento e da fome insatisfeita por aplausos. Talvez não haja artista na história do folk que melhor simbolize o que significa "carência afetiva" e que mais belos frutos tenha feito emergir deste solo sofrido. "I was born to love no one, no one to love me... Only the wind in the long green grass, the frost in a broken tree..." ("I Was Made To Love Magic").

Ironia do destino: a "necrofilia da arte" de que nos fala o Pato Fu também agiu sobre a reputação póstuma de Nick Drake a fim de transformá-lo em um artista mais cultuado e idolatrado depois de morto do que jamais foi em vida. Anos atrás, quando conheci sua obra, ele era incensado em louvores exacerbados, aqui no Brasil, por admiradores como o romancista Daniel Galera e os jornalistas Jonas Lopes e Carlos Eduardo Lima. Queridinho dos críticos, Nick Drake, feito um Velvet Underground, parecia não possuir mais de 100 admiradores, mas todos eles eram altamente entusiásticos e tratavam da obra drakeana como se ela possuísse uma aura de sacralidade... Em tempos onde, segundo Benjamin, o mercantilismo capitalista e o monstruoso desenvolvimento da técnica arrancam a aura de tudo, transformando em mercadoria tudo o que toca, é reconfortante encontrar ao menos algumas obras-de-arte que são reconhecidamente aureolados por enigmáticas auras...

A obra de Nick Drake é uma seminal influência para muito da música "indie" posterior a ele: Belle & Sebastian, Elliott Smith, Iron & Wine, Bon Iver, Devendra Banhart... Ecos drakeanos preenchem muitas das canções do Wilco e de tantos outros representantes do chamado "alt-country": Smog, Lambchop, Uncle Tupelo, Lucero... Poucos compositores e cantores exerceram uma tão profunda reverberação em tudo o que se fez posteriormente em termos de música melancólica, queixosa, pungente, lancinante... Nick Drake: trilha-sonora perfeita para a Geração Prozac.

Drake parece ter passado pelo mundo tão silenciosamente quanto seus álbuns tão plácidos e tranquilos sugerem. Legou-nos apenas três discos de estúdio: Five Leaves Left (1969), Bryter Layter (1970) e Pink Moon (1982). Neles, o cantarolar introspectivo de Drake é um suave veludo que flui sobre um instrumental sempre delicado e discreto, na maioria das vezes pontuado por belos dedilhados ao violão, outras vezes por orquestrações suaves e envolventes, numa música que não soa jamais sentimentalóide ou grandiloquente, mas que nos entristece com uma procissão de sonhos frustrados e sombrias meditações sob o signo de Saturno. Tudo nestas canções recende à introspecção, estoicismo, tristeza suportada com resignação, melancolia sublimada em beleza...

Ouço Nick Drake muito raramente, mas me agrada muito que essa música exista e que eu possa dar um pulo por estes recantos de vez em quando. Em tempos onde a música vomitada pelos mass media torna-se ostensiva e apelativa, quando os posers tomam conta de um mercado musical saturado por marketeiros e interesses comerciais, quando o "batidão" do funk e do poperô invadem nosso espaço auditivo sem a mínima cerimônia, a música de Drake é sempre um refúgio onde podemos entrar em contato com toda uma outra concepção da arte: a arte como manifestação, ainda que trêmula e insegura, da fugaz experiência interior de um mortal que só está entre os vivos por tempo limitado e que não suportaria descer ao túmulo em silêncio. 


Nick Drake canta e encanta pela autenticidade de sua expressão-de-si: sem máscaras nem sorrisos falsos, transforma em música sua alma atormentada. Ouvi-lo é fascinar-se diante do abismo da alteridade e simpatizar com tantos afetos expressos que, ainda que pareçam tão pessoais e idiossincráticos, têm algo de universal e atemporal. Reconhecemo-nos neles como se olhássemos para um espelho que reflete nosso rosto em nossos dias mais nublados.

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Five Leaves Left (1969) [download]

Bryter Layter (1970) [download]

Time of No Reply (póstumo, 1986) [download]

Pink Moon (1982) [download]

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