sexta-feira, 27 de abril de 2012

Saudades dos Tempos de Pipa - Uma homenagem à Cícero e seu "Canções de Apartamento"


"Um grupo de porcos-espinho ia perambulando num dia frio de inverno. Para não congelar, os animais chegavam mais perto uns dos outros. Mas, no momento em que ficavam suficientemente próximos para se aquecer, começavam a se espetar com seus espinhos. Para fazer cessar a dor, dispersavam-se, perdiam o benefício do convívio próximo e recomeçavam a tremer. Isso os levava a buscar novamente a companhia uns dos outros, e o ciclo se repetia, em sua luta para encontrar uma distância confortável entre o emaranhamento e o enregelamento" - Deborah Anna Luepnitz em Os Porcos Espinhos de Schopenhauer

SAUDADES DOS TEMPOS DE PIPA



No bondinho de Santa Tereza, um tímido fanfarrão improvisa uma festa para a deslumbrante donzela a seu lado: oferece bombons e fitas vermelhas, saca do coldre seus brinquedos e seu nariz de palhaço, brinca de cheerleader ; mas nada parece retirar a moça de sua pétrea impassibilidade. 

O cenário que circunda este casal de estranhos que se trombam no bonde é bem diferente das latas-de- sardinha que são os busões lotados de nossas metrópoles, é bem verdade. Remete a algo mais retrô, a tempos idos onde a pressa era menor e os sorrisos mais demorados. Ainda não éramos os alucinados frenéticos de hoje em dia, esses speed-freaks que se deixaram convencer por calhordas capitalistas de que “tempo é dinheiro”. Emana das imagens de “Tempo de Pipa” a saudade de tempos onde os céus ainda eram coloridos com balões e papagaios ao invés de poluição, arranha-céus e nuvens negras de chuva ácida. 

Com suas mais de 150.000 visualizações no YouTube, o primeiro video-clipe do carioca Cícero já virou um novo fenômeno do hype digital (embora não tão colossal quanto a Banda Mais Bonita da Cidade). Nele, Cícero parece querer relembrar-nos de uma ternura cotidiana cada vez mais rara e que corre o risco de ser perdida em nossa modernidade assassina-de-auras e tão repleta de estouros de violência – que têm como exemplos cariocas recentes o Ônibus 174 e o tiroteio de Realengo. “Como amar em tempos de cólera?” - a enigmas assim, me parece, a música de Cícero tateia em busca de respostas. 

No clipe, a mulher desejada mostra-se um tanto inacessível às cabriolas e aos xavecos deste Pierrot sedutor. Ele parece encarnar o mote los-hermânico “deixa eu brincar de ser feliz, deixa eu pintar o meu nariz...”. “Tempo de Pipa”, que já no título traz um sabor de nostalgia de infância, uma saudade de balões coloridos e algodão-doce, é um dos clipes mais singelos da música brasileira recente. Mas a melancolia que à melodia se mistura sugere um intrasponível abismo que se abrisse aquelas duas pessoas, sentadas lado a lado no bonde, e como se o clipe fosse a crônica das tentativas de construir uma ponte que conduza a “viver sem escolta”, para usar uma expressão de “Vagalumes Cegos”. 

Cansado de não encontrar calor ou aplauso de sua pétrea musa, Cícero desce do bonde, como que resignado à frieza das relações humanas no cinza das megalópoles. Mas quando se vai, ela enfim abre um sorriso sem testemunhas, em tardia florescência de grata alegria. É um the end que não chega a ser feliz, mas que carrega muita beleza e nos faz pensar que, de fato, das curvas do corpo humano, o sorriso é a mais bela.




OS PORCOS-ESPINHO DE SCHOPENHAUER

"A solidão é mais uma questão da sociedade hoje em dia do que uma característica de personalidade", disse Cícero em entrevista. "Todo mundo está está se relacionando com essa coisa de viver numa bolha, de sentir falta de uma comunicação sincera. Não é uma coisa que só eu sinto. Todo mundo sente." 

É o que nossos melhores psicanalistas têm frisado insistentemente nos últimos anos: O Tempo e o Cão, de Maria Rita Kehl, e Crônicas do Individualismo Cotidiano, de Contardo Calligaris, são duas notáveis obras a dissecar o isolamento social causado pelas ânsias individualistas de nossas sociedades que, infelizmente, incorporaram até o tutano dos ossos o credo neoliberal da competição e da rivalidade e pretenderam enterrar a ideia, tida por alguns como caduca e demodê, de comunitarismo e fraternidade. 

 A epidemia de depressão e a explosão no consumo de Prozacs é só mais uma evidência das solidões que o capitalismo vai semeando por seu caminho. Se Criolo descreve São Paulo como um labirinto místico, com “bares cheios de almas tão vazias”, onde “a ganância grita e a vaidade excita”, Cícero pinta, lá do Rio de Janeiro, um retrato complementar sobre este “rodopiar em busca do que é belo e vulgar” e sobre o “céu engarrafado” (às vezes até nos esquecemos que existem estrelas, tamanhos os obstáculos urbanos ao nosso olhar...). 




Canções de Apartamento, porém, está longe de poder ser rotulado como uma obra-de-arte deprês, negativista, ideal para quem pretende cortar os pulsos; pelo contrário, carrega antídotos poéticos e belezas abundantes que procuram remediar os males desta condição de desconexão que muitos sentem nas grandes cidades. Em uma das dúzias de vezes em que escutei o álbum na íntegra, relembrei de uma das melhores cenas de Edifício Master, do mestre Eduardo Coutinho, quando ele entrevista a Daniela, moradora um tanto reclusa e anti-social do apartamento-formigueiro em Copacabana.

De olhos baixos diante das câmeras, Daniela vai se desvelando diante de Coutinho como alguém que sofre de “sociofobia”, de stress diante das aglomerações caóticas nas ruas estreitas em que os humanos, ao invés de interagirem ou se conectarem, põe em prática verbos mais broncos como “se trombar” e “se atropelar”. “Não sei se são pessoas demais ou calçadas muito estreitas – ou se é uma fusão desagradável dos dois elementos...”.

Entrevistas que li de Cícero aponta que ele preocupa-se bastante com questões do tipo e que sua obra procura tematizar esta condição psico-social que eu chamaria de “síndrome alone-together” - a sensação de anomia ou de isolamento em meio à muvuca; a solidão no meio da multidão. Ao Scream & Yell, Cícero comentou:
“comecei a ver que a solidão é muito mais um “mal do século” do que uma característica da minha personalidade. São milhares de pessoas sozinhas… juntas, sabe? E esse foi o mote do Canções de Apartamento. […] Estão todos sozinhos. E isso gera uma paranóia que eu acho que é o grande potencial destrutivo dessa nossa sociedade. As pessoas se relacionam até certo ponto, mas dali pra dentro é solidão. E isso é a semente da loucura. “João e o Pé de Feijão” é uma música que fala da mais sincera forma de solidão que eu senti ao morar longe pra cacete, sabe? E “Vagalumes Cegos” fala da forma mais sincera de se combater isso, que eu acredito, que é quebrar com essa paranóia, com essa pressa, com essa muvuca, não comprar esse meio de vida e ir fazer o básico...”


A ÉTICA DO FAÇA-VOCÊ-MESMO NA ERA CIBERCULTURAL 


cícero -  "laiá laiá" [click para ouvir]






Como foi amplamente comentado em quase tudo que se escreveu sobre Canções de Apartamento, este álbum é fruto da solidão criativa de um jovem carioca de 25 anos de idade que resolveu reavivar a ética do-it-yourself – aquela mesmo que já motivou tantas bandas a arregaçarem as mangas ao invés de aguardar as graças de cima. Sinal de que há o potencial para que a Internet, através da disseminação das criações através das redes sociais, torne-se realmente o “novo rádio”. Multiplicam-se os artistas que atingem um sucesso considerável junto a um público que não precisa possuir o CD físico para conhecer todas as músicas, e que por vezes acaba por investir no artista, comprando ingressos de shows ou camisetas, por exemplo, numa recusa prática da tese de que o MP3 transformará artistas e gravadoras em mendigos. Ao invés de conduzir à bancarrota geral, como temem os nóias, o MP3 está reconfigurando e transformando o cenário musical a ponto de abrir horizontes de imensa potencialidade. 

A importância de Cícero neste alvorecer de década está na inspiração que ele pode lançar sobre uma multidão de outros jovens compositores(as) que hoje vivem em anomia e silêncio em milhões de “apartamentos-bolhas” deste país-continente. A atitude de gravar um álbum em casa remete àquela galera do rock independente americano, como o Guided By Voices ou o Magnetic Fields, que sacramentou o low-fi como uma espécie de gênero autônomo, ou seja, mais como uma estética escolhida de forma voluntária do que algo a que se adere por causa de meras limitações técnicas. Já a sonoridade folk remete ao que vêm fazendo, nos últimos anos, nomes como Devendra Banhart, Bon Iver, Beirut ou Fleet Foxes.



Mas Cícero parece, sobretudo, mais um rebento do que poderíamos chamar de “los-hermanização” da música popular brasileira. Cada vez se torna mais explícito o quanto os Los Hermanos foram, na década passada, a mais influente das bandas, impulsionando o nascimento de grupos como o Apanhador Só, Do Amor, Graveola e o Lixo Polifônico e Volver. Grande parte das canções de Cícero também remetem àquelas belas e doloridas canções de Camelo que preenchem Quatro (“Dois Barcos” e “Pois É”), por exemplo, e à poesia amarantina que se espraia por pérolas como “O Velho e o Moço” e “Paquetá”. A sonoridade de Canções de Apartamento, aliás, combina muito bem com aquela dos dois álbuns solo do “hermano”, com quem Cícero têm dividido o palco em shows elogiados como aquela no Circo Voador.

Na coletânea da Musicoteca que presta tributo aos Los Hermanos,
Cícero canta "Conversa de Botas Batidas"

Recentemente, Cícero esteve mais uma vez aqui em Goiânia, num excelente evento do Vacas Magras, e pude assisti-lo ao vivo pela primeira vez. A beleza maior do show no Diablo Pub esteve na experiência de estar diante de um jovem cantor e compositor, ainda um tanto tímido e inseguro, mas que arrisca-se a expor sentimentos íntimos diante de desconhecidos predispostos a emprestar-lhe o ouvido e a atenção. Foi um show low-key, sem arrebatamentos ou pirotecnias, mas que me agradou bastante, especialmente pois Cícero parece ter conseguido compor canções extremamente pessoais, em que sentimentos autênticos estão envolvidos, mas que não deixam de possuir um valor de comentário social, um valor de crônica do zeitgeist e, sobretudo, um valor de re-conexão humana através da música.

Canções de Apartamento, um dos álbuns brasileiros mais importantes desta jovem década, plantou uma semente promissora que tende a desabrochar nos campos férteis de muitos outros anônimos que hão de, no futuro, usar seus apertamentos e suas solidões como trampolim para uma expressão-conexão que equivale a uma criação-de-pontes. Canções compostas na solidão de um apartamento ganharam o mundo, tocaram milhares e construíram laços afetivos múltiplos, muitos deles bem mais promissores, artisticamente, que os encontrões e os solipsismos de nossa cotidiana urbanidade.


LEIA MAIS: Scream & Yell - Rock in Press - Miojo Indie - Canções de Apartamento no Facebook - Download.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

As Ruas de Goiânia em Polvorosa (Gonzo Reportagem sobre as Manifestações de Rua das últimas semanas)





















"Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis..."

LEGIÃO URBANA



No "Dia do Basta", 21 de Abril último, quando mais de 80 cidades brasileiras organizaram marchas em protesto contra a corrupção, cerca de 8 mil goianienses tomaram as ruas da capital do Estado governado por Marconi Perillo. Foi o segundo fim-de-semana consecutivo com milhares de manifestantes colorindo as ruas com provas incontestes de que há quem se levanta a bunda do sofá contra o conformismo e que arregaça as mangas em prol de mudança. Organizadas essencialmente pelo Facebook e demais redes sociais, esses eventos eletrizantes são provas de que não foi só a Primavera Árabe que soube utilizar a Internet como ferramenta de Mobilização Social e que, seguindo o exemplo da Praça Tahir, Goiânia começa a realizar notáveis Occupy Praça Cívica.

Praça Tahir, Egito, durante a "Primavera Árabe" (2010-2012)




Bradando a muitas vozes slogans como "Marconi, bicheiro, devolve o meu dinheiro!" e "O povo acordou, o povo decidiu, ou pára a roubalheira ou paramos o Brasil!"a massa festiva tomou as ruas com alegria e ímpeto, num movimento cívico pacífico, apesar de alguns pequenos conflitos isolados com a polícia. Minha impressão é a de que essas passeatas tem um apoio muito maior da população goiana do que as "notas oficiais" do governo sugerem quando tentam menosprezar esse agito como se viesse de uma "oposição minoritária".  

Uma manifestação, na era da cibercultura, tem toda uma série de peculiaridades que não se via em tempos idos: além da onipresença das câmeras fotográficas e dos celulares com Instagram, em que dúzias de participantes servem também como repórteres e documentaristas, as máscaras e fantasias indicavam as "filiações" dos manifestantes, seja ao movimento hacker Anonymous, seja à simbologia anarco-pop disseminada por V de Vingança, seja ao movimento estudantil ou sindical. Muitos dos jovens protestadores, com as caras-pintadas com as cores tropicais da bandeira nacional, pareciam querer viver pela primeira vez o que seus pais viveram nas manifestações pelas Diretas Já, pelo fim da Ditadura Militar ou pelo impeachment de Collor.


A multidão - predominantemente jovem - marchou com um ardor que eu, pelo menos, nunca tinha vivenciado, de dentro do turbilhão, nesta vida. Aos 27, posso dizer que perdi meu cabaço quanto à participação em grandes protestos políticos. Me senti galvanizado e comovido ao marchar em meio a essa galera sem medo de erguer sua voz. Me senti feliz de me sentir parte de um coletivo que, arrebatado, reclama diante da sociedade seu direito à expressão e à rebeldia. Foi bonito ver uma juventude que, tendo nascido original, não quer morrer uma cópia. Que, como Maiakóvski diria, age como se não tivesse nenhum cabelo branco por dentro. Foi lindo ver professores, educadores, pedagogos, universitários, movimentos estudantis e docentes, botando a boca no trombone contra um Governo que enxerga a Educação como algo relegado ao terceiro plano - pois a prioridade, é claro, são as fazendas e os "acordos comerciais"! E, claro, o jogo-do-Bicho e os caça-níqueis.

Só que agora deu zebra. As "tenebrosas transações" de que nos fala Chico Buarque começaram a vir à tona. Uma cachoeira de escândalos de corrupção e enriquecimento ilícito parece trazer uma crise moral das mais sérias para certos políticos que, por baixo do pano, nos bastidores do poder, têm nos surrupiado em surdina.  E o povo que toma as ruas parece ser esperto e lúcido o bastante para ter aprendido com a História e para "sacar" com esperteza quando "há algo de podre no Reino da Dinamarca". "O povo não é trouxa", lia-se num cartaz. "É o governo quem deve temer o povo", dizia outro.


 Se acho importante divulgar as fotos retiradas durante estas manifestações de rua, que muita gente garante serem as maiores em Goiânia desde o "Fora Collor!", é porque a Internet, neste caso, se tornou o único abrigo possível de um relato factual das vivências da rua. "In times of universal deceit, telling the truth becomes a revolutionary act", diz George Orwell. E hoje, o Facebook e a blogosfera é uma das únicas chances viáveis de pôr em prática aquele preceito de que tanto gosto e que aprendi com o sábio punk Jello Biafra: "não odeie a mídia; torne-se a mídia!"

O governo Marconi, todo respingado com as gotas da cachoeira de escândalos de corrupção que têm estourado nos últimos tempos, têm exercido sobre a mídia local uma influência bastante "coronelesca". Com a mídia "estrangeira" (quero dizer, que vem de fora do Estado, e que este ainda não conseguiu subornar...), o "coronelismo" é escancarado: dias atrás, o governo Marconi, suspeita-se, contratou um monte de capangas, mandou-os sair pela cidade em carrões, parando em todas as bancas-de-jornal, tentando EXTERMINAR as revistas Carta Capital que circulavam por Goiânia revelando os complôs íntimos entre Demóstenes e o bicheiro.

Deu ZEBRA no jogo-do-bicho.
Todo mundo com cara de "Xiii, Marquinho! A Casa caiu!" 

Uma antiquíssima tática de políticos inescrupulosos, que consiste em varrer a sujeira para baixo do tapete, mantendo as aparências de higiene imaculada do palácio. Esse governo parece querer mandar na mídia feito aqueles generais da Ditadura que tiveram a pavorosa idéia de instalar a censura prévia e os porões do DOPS. O desprezo absoluto do governo Marconi pelo Direito à Informação é chocante.  Quando as manifestações de rua estouraram, o governo Marconi começou a mandar e desmandar na mídia local, querendo que os subservientes vassourinhas ajudassem a esconder debaixo dos tapetões as realidades nas ruas de Goiânia e das revelações operação Monte Carlo da PF.

O Diário da Manhã foi um cãozinho tão obediente ao patrão que não teve pudores de mentir descaradamente sobre o número de presentes à 1a Marcha - e subestimaram miopemente os cerca de 3 mil manifestantes (há quem fale em 5 mil....)  como se fossem 500 gatos pingados. Palhaçada. Numa tentativa mesquinha e cheia de baixeza de depreciar o movimento, este jornal soltou seu escárnio pra cima da galera que "só sabe cantar três versos do Hino Nacional". O radialista Luiz Gama, também fielmente marconista, soltou alguns dos comentários mais fascistóides e ignorantões que tive o desprazer de ler nos últimos anos, dizendo, por exemplo, que na manifestação "só tinha bandido" e que "qualquer promoção nas Casas Bahia junta mais gente".

Essa palhaçada de cobertura midiática, porém, não consegue esconder completamente o que realmente está se vivenciando nas ruas - e principalmente pois a Internet eles não vão conseguir comprar. Tudo indica que esse governo Marconi vive uma de suas piores crises morais destes 3 mandatos - pelo menos é o que muitos goianienses têm me dito ou expressado nas ruas. Desde o "Fora Collor!", em que os caras-pintadas foram às ruas exigindo o impeachment de Fernandinho Almofadinha, que as ruas de Goiânia não vivem tamanho fervor e frisson.

A seiva enérgica de uma juventude indignada é o que está correndo pelas veias desta que é uma das mais jovens capitais brasileiras e onde a juventude, há tanto tempo, têm feito tanto de importante em prol, por exemplo, dos rumos da cultura independente (principalmente musical) brasileira. Estou pensando no Goiânia Noise, na Monstro Discos, no Bananada, na Fósforo Cultural, na Construtora, nas dúzias de excelentes bandas e músicos e compositores e produtores culturais, em todo esse povo que, agindo em rede e em conjunto, criou uma cena artística tão efervescente, criativa e sustentável. E com promessa para expandir-se ainda mais. Vale lembrar que, tempos atrás, quando eu ainda nem morava em Goiânia, essa galera tomou as ruas no movimento Rock Pelo Niemeyer, mostrando a força que se pode tirar do preceito do-it-yourself quando ele é metamorfoseado em do-it-together!


Está armado em Goiânia, pois, um the clash que ainda terá muitos capítulos: de um lado, um governo sob ameaça de estar afundado até o pescoço na lama dos jogos-de-azar, que arrancam a grana sofrida dos pobres e enchem as contas bancárias daqueles que já possuem seus aviões e suas fazendas. De outro, um setor cada vez maior da sociedade composto por gente bem-informada, cética e ativa, uma juventude desperta e desconfiada com relação aos políticos, uma massa que está de saco cheio de roubalheira, concentração de capital, politicagens autoritárias, coronelismo e resquícios de ditadura - e que toma as ruas na certeza de que estar lutando por uma boa causa. 

 O futuro? O futuro, desconheço; mas o presente é de excitação e suspense.

 * * * * * 

ALGUMAS FOTOS DAS DUAS PASSEATAS EM GOIÂNIA
(14 e 21 de ABRIL de 2012)

Mais fotos no Facebook: Marcha 1 - Marcha 2





  

  




















(Fotos por Thiago Lemos, Jean-Pierre Pierote, Caroline Urbano, Andre Kerygma, Eduardo Carli, Rafael Pinto, dentre outros.)


Alguns vídeos:



terça-feira, 24 de abril de 2012

Especial Bananada 2012 - Goiânia - 28 de Abril a 06 de Maio


Em sua 14ª edição anual consecutiva, o já lendário festival Bananada, um dos mais importantes do cenário brazuca, esparrama-se em 2012 por toda uma semana (28 de Abril a 06 de Maio). Realizado  com recursos da Lei de Incentivo à Cultura do município de Goiânia, o Bananada 2012 irá trazer um saboroso banquete artístico à capital goiana: serão cerca de 25 shows, além de discotecagens, debates e mostras de vídeoclipes. 

A produtora cultural Construtora, que  há dois anos assumiu a responsa de organizar o festival, tradicionalmente a cargo da Monstro Discos, preferiu "descentralizar" o agito e espalhar os eventos por seis points da cidade: Bolshoi, Metrópolis, Diablo, Ambiente, El Club e Centro Cultural UFG. O valor pago pelos ingressos será decidido pelo próprio público, que tem a autonomia de escolher um valor entre R$2 e R$100 de contribuição para cada atração, no inovador e ousado esquema do "Quanto Vale o Show?"


Os texanos do White Denim desembarcam de Austin como a atração gringa que fecha o festival. A lenda viva do cancioneiro tupiniquim Jards Macalé, os hard-rockers garageiros do Forgotten Boys (SP) e os cuiabanos do Macaco Bong (MT) são outros dos destaques. O festival também será uma ótima oportunidade para o público goianiense dar uma sacada em artistas do cenário do Rio Grande do Norte. Em 2010 o Bananada já havia recebido o Camarones Orquestra Guitarrística [veja um vídeo exclusivo]; agora é a vez de Telma & Gadelha e Red Boots darem o ar de sua graça no cerrado.

Como de praxe, algumas das mais expressivas bandas da cena de Goiânia também têm lugar de honra no palco: o Black Drawing Chalks, prestes a lançar seu 3º álbum de estúdio (No Dust Stuck On You), tocará "no embalo" do show no Lollapalloza; os Hellbenders, que também preparam um aguardadíssimo álbum de estréia, dão mais uma amostra da potência vulcânica do stoner rock produzido na cidade; e artistas já consagrados no cenário local como Diego de Moraes, Gloom, Violins, Grace Carvalho, Johnny Suxxx e Mugo apresentam-se lado a lado com talentos emergentes como Ultravespa, Cambriana, Dry e Overfuzz.

Durante o festival, Depredando volta com cobertura in loco, vídeos e fotinhas exclusivas e muito mais notícias direto do front. Por hora, confiram abaixo tudo o que vai rolar e baixem alguns discos fundamentais!

Macaco Bong (foto: Junia Mortimer)

Junia Mortimer)







PROGRAMAÇÃO DO BANANADA 2012 

28/04 - Sábado
Lançamento do festival Bananada 2012 às 18:00 na Fnac
com pocket show da banda Gloom


29/04 - Domingo
Krow (MG), Kamura, Mugo (GO) e Aurora Rules,
na Ambiente Skate Shop às 15h


30/04 - Segunda
Djs Thelma e Loiuse, Dj Lucas Manga, Dj Romulo Chaul,
 no El Club às 23h


01/05 - Terça
Abertura oficial do Movida com Dj Matias e show de Grace Carvalho,
no Centro Cultural UFG às 20h (Evento fechado apenas para convidados)


02/05 - Quarta
Debate Movida das 10 às 12h, no Centro Cultural UFG. Mostra Movida das 15 às 19h, no Centro Cultural UFG. Bandas Ultravespa e Hellbenders, no Bolshoi Pub, às 23h


03/05 - Quinta
Debate Movida das 10 às 12h, no Centro Cultural UFG
Mostra Movida das 15 às 19h, no Centro Cultural UFG
Bandas Cherry Devil e Johnny Suxxx no Metropolis Retrô às 23h


04/05 - Sexta
Debate Movida das 10 às 12h, no Centro Cultural UFG
Mostra Movida das 15 às 19h, no Centro Cultural UFG (Artistas do Conexão Vivo a confirmar, no Centro Cultural UFG às 21h)
Bandas Dry, Overfuzz, no Diablo Pub, às 23h.


05/05 - Sábado

Centro Cultural UFG, às 16h

Coletivo Musical (GO)
Cambriana (GO)
Riverbreeze (GO)
Macaco Bong (MT)
Diego de Moraes (GO)


06/05 - Domingo

Centro Cultural UFG às 15h

Dom Casamata (GO)
Red Boots (RN)
Violins (GO) 


DOWNLOADS :

Macaco Bong - Artista Igual Pedreiro (2008) - download

Forgotten Boys - Taste It (2011) - download

Diego e o Sindicato - Parte de Nós (2011) - download - matéria

Johnny Suxxx & The Fuckin' Boys - Zebra (2010) - download

Jards Macalé - Contrastes (1977) - download - +10 discos dele

Violins - A Redenção dos Corpos (2008) - download - +discos deles

Black Drawing Chalks - Life Is... (2010) - download - Big Deal (2007)

White Denim - "D" (2011) - download

Mugo - "Go To The Next Floor" (2009) - download
Leia também a entrevista exclusiva

(Agradecemos aos blogs Hominis Canidae, A Pílula do SomUm Que Tenha e Musicoteca pelos links disponibilizados aqui. Bandas que não quiserem ter seus discos disponibilizados aqui, e quiserem solicitar a remoção, ou bandas que não estão com discos pra baixar aí e gostariam de tê-los adicionados, entrem em contato: educmoraes@hotmail.com.)

Na seqüência, ouça a MIXTAPE que o Depredando preparou coletando 16 das bandas que tocam no BANANADA 2012. Para ouvir, é só clicar PLAY abaixo ou dar um pulo no site do 8tracks. Boa curtição!

Tracklist: 01) forgotten boys; 02) black drawing chalks; 03) white denim; 04) macaco bong; 05) ultravespa; 06) gloom; 07) jards macalé; 08) diego e o sindicato; 09) cambriana; 10) red boots; 11) johnny suxxx; 12) hellbenders; 13) mugo; 14) overfuzz; 15) aurora rules; 16) violins. DOWNLOAD DA COLETA EM MP3 (VIA 4 SHARED)

Coletânea de música brasileira - 5º Volume

Caldeirão Tupiniquim #05 from depredando on 8tracks.


CALDEIRÃO TUPINIQUIM #005

01) TOM ZÉ, “Tô”; 02) CARMEN MIRANDA, “E o Mundo Não se Acabou”; 03) CURUMIN, “Guerreiro”; 04) ELIZETH CARDOSO, “Eu Bebo Sim; 05) MÓVEIS COLONIAIS DE ACAJU, “Cão Guia”; 06) OS MUTANTES, “Hey Boy”; 07) ULTRAJE A RIG
OR, “Marylou” (Versão Carnaval); 08) RAUL SEIXAS, “Moleque Maravilhoso”; 09) SEU JORGE, “Onde Está o Samba”; 10) CLARA NUNES, “Obsessão”; 11) CÍCERO, “Tempo de Pipa”; 12) NÁ OZZETTI, “Baú de Guardados”.

VOLUMES ANTERIORES: QUATRO - TRÊS - DOIS - UM

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Aldous Huxley, "Admirável Mundo Novo"


ARMADILHAS DA UTOPIA
- Uma leitura de Brave New World -


O procedimento de Aldous Huxley em seu Admirável Mundo Novo, um dos romances mais importantes não só do sci-fi como gênero literário, mas de toda a literatura inglesa do século XX, centra-se na descrição de um Estado aparentemente utópico: uma Civilização de tecnologia ultra-avançada que gaba-se de suas proezas de engenharia genética, estabilidade social, condicionamento neo-pavloviano do comportamento, divertimentos eletrônicos multimídia e paraísos artificiais disponíveis com a ingestão de poucos gramas de soma ("dez centímetro cubículos vencem mil pensamentos lúgubres", escreve Huxley descrevendo a wonderdrug da época).

O estilo de sci-fi nesta obra de Huxley é inteiramente terreno: não há aliens, OVNIs, colonização de outros planetas. As estrelas distantes, que em seu mutismo eterno apavoravam Pascal, mal aparecem na trama. Trata-se, para Huxley, de imaginar o futuro da Terra, tentando prever com a fantasia alguns dos perigos, abismos, potenciais e esperanças que o presente encerra em seu ventre grávido de futuros. Mas trata-se, antes de mais nada, de fazer soarem os alarmes e denunciar os perigos desta Utopia pretensamente tão bela.

A Utopia, em Brave New World, é mais vilã do que mocinha. A epígrafe, de autoria de Nicolas Berdiaeff, lança-nos a um estranho problema em relação à utopia: "Comment éviter leur reálisation définitive?" [“Como evitar sua realização definitiva?”] Ou seja: evitar a utopia, ao invés de abraçá-la, passa a ser... o ideal. Huxley, como quem arranca um Véu de Maya que encobria os olhos da Utopia, cegando-a para sua própria obscenidade e terror, realiza em Brave New World uma distopia – ou seja, uma inversão da utopia, quase uma nietzschiana "reviravolta de todos os valores".

O que é cultuado como ídolo sofre a revolução que o torna desdenhável como um cisco. O adorável mundo novo revela-se como um grotesco escândalo para o Selvagem que é triturado por suas engrenagens grotescas. O romance de Huxley, portanto, longe de ser uma celebração entusiástica do utopismo, é uma denúncia satírica dos perigos que se escondem nas tentativas humanas de criar sociedades perfeitas.

Huxley parece querer nos mostrar que sempre há um certo descompasso entre o desenvolvimento tecnológico e a antiquíssima confusão, indecisão e discórdia humanas quanto aos sentidos-da-vida. Não há unanimidade entre a humanidade sobre qual seria o "Objetivo Último" dela mesma. Uns isolam-se em eremitérios na mata, procurando por sabe-se-lá que epifanias místicas, enquanto outros tornam-se homens-de-multidão, animais-de-manada, incapazes de suportar um grama que seja de solidão... Enquanto uns vão a missa e se mortificam, outros enchem a cara e caem na esbórnia; uns entram para mosteiros, outro viram militantes políticos; uns são carnívoros inveterados, outros vegetarianos convictos; há monogâmicos, adúlteros, polígamos, pedófilos, orgiásticos, perversos, celibatários, indecisos; há apolíneos, dionisíacos, socráticos, epicuristas, estóicos, pirrônicos, marxistas, nazis, céticos, agnósticos, fanáticos...

Uma utopia intenta acabar com a imperfeição de tudo o que é humano e instaurar uma sociedade... homogênea, harmoniosa, em paz consigo mesma. O "estado" que a Utopia aspira a instaurar no Real consiste num estado de estabilidade, equilíbrio, estase. Uma vez concretizada a utopia, é como se as rodas da História cessassem de girar, como se a sociedade atingisse um ponto ótimo a partir do qual pode abandonar-se calmamente às delícias da inércia.

Em Admirável Mundo Novo, Huxley pinta o retrato de uma sociedade utópica onde "homens e mulheres padronizados, em grupos uniformes", saem dos frascos das incubadeiras e laboratórios de eugenia absolutamente idênticos uns aos outros, produzidos em série como bichos-de-pelúcia ou automóveis. A perversidade do sistema econômico é escancarada por Huxley: as castas inferiores, os Ípsilons, são literalmente criados em laboratório e têm seus fetos judiados por procedimentos malignos: seus embriões recebem injeções de álcool e outras substâncias desestabilizantes, a fim de que nasçam semi-aleijados, com retardamentos mentais, crippled for life. "Quanto mais baixa é a casta... menos oxigênio se dá." (p. 42) "Todo o pessoal de uma pequena usina constituído pelos produtos de um único ovo bokanovskizado" (p. 32): "o princípio da produção em série aplicado enfim à biologia"!

Já os ministérios desta sociedade – Predestinação Social, Condicionamento Emocional... - são todos centrados em eliminar da vida social o imprevisível, programar corações e mentes para que ajam sempre da maneira desejável, sem indesejáveis desvios de conduta. Em Brave New World vigora o Império da Normopatia: os normais têm direitos de imperadores diante dos destoantes, dos anormais, dos desviantes, dos indivíduos demasiado... individualizados. A utopia quer que cada indivíduo seja uma peça intercambiável de uma maquinaria social maior que ele; e uma peça que, ao quebrar, pode ser facilmente substituída por outra. Esta utopia deseja homens que ajam como abelhas na colméia, formigas num formigueiro. E além do mais esforça-se para que... amemos nossa servidão, nosso sacrifício, nossa auto-imolação nos altares do coletivo!

Um Estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes políticos de um Poder executivo todo-poderoso e seu exército de administradores controlassem uma população de escravos que não tivessem de ser coagidos porque amariam sua servidão. Fazer com que eles a amem é a tarefa confiada, nos Estados totalitários de hoje, aos ministérios de propaganda, diretores de jornais e professores." - ALDOUS HUXLEY, 1946


Que uma norma-de-conduta, imposta pelos poderosos de cima para baixo, seja aceita por toda uma sociedade: eis o sonho utópico cuja tentativa de edificação já fez nascerem tantos totalitarismos. O reinado da Utopia é um Absolutismo Moral. E absolutistas morais podem ser tanto os crentes quanto os ateus: de Hitler a Stálin, os utopistas derramam o sangue dos vivos em nome dos amanhãs cantantes.

Neste pavoroso Mundo Novo, ao invés de leite materno os bebês bebem uma "secreção pasteurizada" (p. 232). Ao invés de crescerem no ventre das mães, amadurecem na penumbra subterrânea de um laboratório científico, dentro de frascos, rolando linha-de-montagem abaixo na industriosa fábrica-da-vida. Ao invés de irem à escola, vão ao centro de Condicionamento, onde são soterrados debaixo da repetição de slogans e programas-de-comportamento que visam a regular, controlar e submeter o trabalho e o lazer, a moral e a sexualidade, o misticismo e a criação. A sociedade que nasce disto é uma em que os cidadãos foram ensinados a crer que "não há crime mais odioso do que a falta de ortodoxia na conduta" (p. 233). Morte à imprevisibilidade e à experimentação lúdica! Seguir em trilhos de ferro com o trem de opiniões tão convictas que nenhum vento de argumento as abale.

Não há respeito pela diferença nesta sociedade: tudo que foge à normalidade, qualquer um que recuse-se a vestir o uniforme, que não queira "fazer como faz todo mundo", que se negue a ser uma "mariazinha-vai-com-as-outras", que se revolte contra seu destino de "animal de rebanho", como diria Nietzsche, este é estigmatizado e perseguido pelos poderes sacerdotais e políticos que gerem esta República da Homogeneidade. Bernard Marx, no livro de Huxley, é condenado ao exílio na Islândia, tratado como um pária e um subversor (p. 234), por ousar destoar da normalidade civilizada. É ele uma espécie de homenagem de Huxley a estas figuras heróicas que ousam "desafinar o coro dos contentes", para relembrar um verso de Torquato Neto, através da afirmação de uma individualidade, por mais imperfeita e dissonante que soe.

Em prol da estabilidade social, ou seja, para que não surjam desníveis entre os indivíduos, o Estado proclama uma lei que... proíbe Shakespeare! Que bane Beethoven! Que lança a filosofia na lata de lixo da História! De agora em diante, só se ensinará nas escolas, e só se doutrinará na mídia, sobre assuntos que dizem diretamente respeito à utopia da Estabilidade! Tudo será dito e tudo será feito em nome desta estabilização... "...não se podia permitir que pessoas de casta inferior desperdiçassem o tempo da Comunidade com livros e que havia sempre o perigo de lerem coisas que provocassem o indesejável descondicionamento de algum dos seus reflexos." (p. 55)

O condicionamento neo-pavloviano, os ovos bokanovizados, a hipnopedia, a ração diária de soma, a garantia de deleites sensórios no Cinema Sensível, tudo são torrões de açúcar dados pelo Estado para que cada casta sinta-se feliz com o status quo que lhe foi... predestinado.
"A flor do campo e as paisagens têm um grave defeito: são gratuitas. O amor à natureza não estimula a atividade de nenhuma fábrica. Decidiu-se que era preciso aboli-lo, pelo menos nas classes baixas: abolir o amor à natureza..." (p. 56)
No que diz respeito à amor e sexualidade, o que vigora é o credo: "Cada um pertence a todos..." Esta é a doutrina enfiada na mente de todas as crianças, repetida milhares de vezes nos ouvidos das mentes hipnotizadas dos fedelhos, como se fosse a verdade absoluta e última sobre a afetividade e a sexualidade humanas: "ninguém é dono de ninguém!" Huxley problematiza (e isso umas três décadas antes do Movimento Hippie começar a despontar!) a questão do amor livre. Brave New World contêm a descrição de baladas daquelas no Mundo do Futuro: regadas à embriaguez ocasionado pelo soma, que talvez não seja lá muito diferente daquela que o ecstasy ocasiona aos ravers de hoje em dia, estas baladas são orgias de pisoteação do dogma destronado, pisoteado e posto fora-de-cartaz do... casamento monogâmico. Esta instituição social... desapareceu por completo deste Admirável Mundo Novo onde as crianças não nascem mais de uma trepada entre seu pai e sua mãe, mas sim enfrascadas em provetas, tubos de ensaio, rolando nos trilhos de ferro de uma linha-de-montagem... Huxley e seu pesadelo sinistro!...
" - Felizes jovens! - disse o Administrador. - Nenhum trabalho foi poupado para lhes tornar a vida emocionalmente fácil, para os preservar, tanto quanto possível, até mesmo de ter emoções." (pg. 85)
Esse "descartismo" afetivo, para falar como Marina Colasanti, é análogo ao descartismo do nosso tão conhecido consumismo (que, dada à quantidade gigantesca de LIXO que produz podia ser chamada de lixismo). Muitos dos males que hoje são presenças prementes em nossa realidade, como a obsolescência programada, já eram prefigurados por Huxley nesta sociedade que imaginou como descartando sem fim, jogando meias no lixo ao primeiro desfiado, condicionada a seguir como preceito-de-vida que "mais vale dar fim que consertar" (95).

"Morte às emoções, pois!" - decretam os apologistas desta utopia. Pois nada desestabiliza mais uma sociedade humana dos que... as paixões destas criaturas passionais que somos. Mas não são necessariamente assim inquietas as forças vitais, não é essencialmente móvel o élan que nos anima? E os utopistas sonham com um coração em descanso. Com uma paz impossível. Que a correnteza não mais nos arrastasse, que paixões não mais nos inundassem, que tudo quedasse... estável e sereno. Sem correria nem esforço, sem insatisfação nem desejo. "No alarms and no surprises", como canta Thom Yorke. Um coletivo em Nirvana.


Em prol dessa "estabilização", criou-se este monstro. Talvez o mais triste na condição existencial dos Alfas, Betas, Deltas, Gamas e Ípsilons de Huxley é que nenhum deles "podia ter idéias verdadeiramente singulares". Seus cérebros foram cuidadosamente construídos e programados no sentido da obediência estrita a regras, padrões de comportamento, fés inquestionadas. E se há algo de heróico em Bernard Marx e seu amigo Helmholtz, está no fato de que eles "recusavam-se a abandonar o direito de criticar essa ordem" (p. 246).

Como atingir esta beatitude política que a Utopia encerra em sua imagem idealizada? Doutrinação ideológica, desde o berço; condicionamento severo de condutas; muita disciplina social e muito controle; eis aí os caminhos para a concretização do estado utópico! Que cidadão ousará discordar da veracidade absoluta de um slogan que lhe foi martelado na consciência 62 milhões de vezes? Um tal papaguear ideológico é capaz de reduzir um cérebro mirim a uma papa de imbecilidade. Brave New World é o retrato de uma sociedade de submissos imbecis que sorriem tolamente dentro de uma sociedade de castas altamente injusta e hierarquizada - e que não se revoluciona pois todo mundo está tão dopado e reduzido à apatia normopata que não há disposição para a luta, a mudança, a tentativa de novas vias.

Aqueles que buscam trilhar novas vias, ou que são arrastados, a despeito de si mesmos, para caminhos interditos e conclusões proibidas, são tratadas pelos Poderes Reinantes como perigosos párias que merecem ser mandados para uma ilha na Islândia... O stalinismo exilando oponentes políticos para a Sibéria é uma exemplo histórico suficiente para mostrar o quanto Huxley, em sua obra de ficção científica, teve refinadíssima percepção da realidade histórica (inclusive em seus desdobramentos futuros)! Talvez por isso Admirável Mundo Novo seja uma obra literária à qual tão bem cabe o adjetivo honroso de visionária.





"Quanto ao objetivo ideal do esforço humano existente em nossa civilização, há cerca de trinta séculos tem havido uma concordância geral. Desde Isaías até Karl Marx, as vozes dos profetas têm sido uníssonas. Na Idade de Ouro pela qual anelavam, haveria liberdade, paz, justiça e amor fraterno. “Nação não erguerá espada contra nação”; “o livre progresso de cada um conduzirá ao livre progresso de todos”; “o mundo estará cheia da sabedoria do Senhor, como as águas enchem os oceanos”. 
Com referência ao objetivo, repito, tem havido por longo tempo um acordo geral completo. O mesmo já não se pode dizer quanto aos caminhos a serem seguidos para atingir tal obetivo. Aqui, a unanimidade e a certeza cedem lugar à maior confusão, ao impacto das opiniões contraditórias dogmaticamente mantidas e manifestadas com violência e fanatismo. 
Ao invés de avançar em direção ao objetivo ideal, a maioria dos povos do mundo está rapidamente dele se desviando. […] Um outro doloroso e significativo sintoma é a calma com que o público do século 20 aceita certos relatos por escrito e até mesmo fotos e filmes sobre massacres e atrocidades. Pode-se alegar, como desculpa, que durante os últimos 20 anos as pessoas ficaram tão saturadas de horrores, que estes já não excitam piedade pelas suas vítimas ou indignação contra os que os executam. Permanece, porém, o fato da indiferença: e como ninguém se incomoda quanto aos horrores, mais horrores são perpetrados. 
Intimamente associada à regressão do gênero humano no campo da caridade, está o declínio da consideração do homem pela verdade. Em nenhum período da história do mundo a mentira organizada tem sido praticada tão desavergonhadamente ou, graças à moderna tecnologia, tão eficientemente ou em tão vasta escala…” 
ALDOUS HUXLEY
Ends And Means