domingo, 15 de julho de 2012

I have been witness to such wonders...



UMA APOLOGIA DOS ESTICADORES DE HORIZONTE
Um ensaio sobre arte, filosofia e psicodelia

“Everything that lives 
Lives not alone nor for itself.”

WILLIAM BLAKE





Manoel de Barros gostava de dizer que a poesia deve servir como um "esticador de horizonte".
William Blake queria que sua arte nos fizesse "romper a concha do prosaico", nos levando a enxergar as coisas com "as portas da percepção purificadas". E toda filosofia, diz-se desde a Grécia mais remota, é "filha do espanto" - e da angústia, eu adicionaria. A arte e a filosofia que mais me agradam agem sobre a consciência de modo a deixá-la boquiaberta. Wonderstruck.

Banalidade que sabem todos que já embarcaram numa viagem nas asas do THC ou do LSD: a consciência é expansível. Os horizontes humanos são esticáveis. É o que ocorre com a leitura de um bom poeta, que nos abra os olhos para aquilo a que antes éramos cegos; a audição de uma boa sinfonia, que nos escancara os ouvidos para aquilo que antes éramos surdos; a contemplação de alguma paisagem ou pessoa ou prodígio impressionante que nos deixe boquiabertos, aumentados em nossa vitalidade e em nossa capacidade de atenção [awareness], vencendo a triste tirania do tédio e da indiferença.

Ouçamos o que diz Nietzsche sobre o assunto: “A consciência é o último estágio, o mais tardio, daquilo que é orgânico; é, por conseguinte, também o que há de menos acabado e de menos forte. [...] Considera-se [erroneamente] a consciência como uma grandeza constante! Nega-se seu crescimento, sua intermitência! [...] Julgando já possuir  o consciente, os homens pouco se esforçam por adquiri-lo – e hoje ainda não é diferente!”  (A Gaia Ciência, #11) É preciso, pois, considerar a Consciência como um campo a ser conquistado, e não algo cuja conquista já se “possua”. A “expansão de consciência” que se pode, com muito custo, conquistar através da leitura de Baudelaire ou da audição de Wagner, é-nos fornecida com uma força e uma vivacidade acachapantes por algumas gotículas de LSD diluídas num cubículo de açúcar.

O que chamamos de "consciência" individual, longe de ser algo de estável, é uma pirralha irrequieta como aquele fluxo, dentro do qual está contida, que Heráclito pensava constituir o próprio rosto mutante do cosmos. Everything flows... Nunca se pisa duas vezes nem no mesmo rio, nem no mesmo segundo. O tempo, irreversível e imparável, flui adiante, arrastando-nos com ele feito folhas caídas na correnteza.

Nós, em nossa sina de transitoriedade, provisoriamente viventes em meio ao arrastão cósmico, acompanhamos o carrossel dos dias às vezes sem nem notarmos esta verdade que nos sussurra o vento ("the answer, my friend, is blowing in the wind..."): estamos - pasmem! - rodopiando feito um pião pelo salão de danças do cosmos, viventes conscientes "in a green ball which floats through the heavens" (pra usar uma expressão de Ralph Waldo Emerson em seu ensaio "Nature").

Sabe aquela história de que só usamos uns 10% do nosso cérebro? Que digam os neurologistas se é fato ou não; só sei que me parece muito plausível. Minha opinião é a de que estamos realmente longe de sabermos utilizar todo o potencial que trazemos, cada um de nós, dentro de nossos crânios. A consciência está longe de estar pronta: consciência é uma "coisa" passível de ser progressivamente ganha. Ora, impactar-nos de modo a que usemos mais os miolos, expandindo nossos horizontes, parece-me uma das funções essenciais da arte e da filosofia (minhas musas...): elas devem servir a re-espantar-nos, enxotando-nos de nosso torpor, despertando-nos das letargias. A missão da canção, do poema e da substância psicodélica: avivar e expandir consciência.

A infância, chamada pelos ingênuos de "idade da inocência", é também a idade - essa parte da história os adultos não gostam muito de mencionar... - em que se instalam em nós os cabrestos. Os freios. Os ditames. Os ideais sublimes. As noções religiosas. As regrinhas de etiqueta. As sugestões dietéticas. Enfim: o cérebro mirim, desde cedo, recebe um influxo cultural tremendo. Uma força externa, social, cultural, molda-o para os mais diversos fins, dos mais bem-intencionados aos mais sórdidos. A criaturinha é domesticada, "moralizada" com punições e recompensas, forçada a seguir certas vias pré-determinadas por gerações já mortas, às vezes incluída sem consulta em uma comunidade religiosa, um time de futebol, um preconceito político.

Logo vai-se a inocência e embarca-se na triste loucura de ser um homem normal: assalariado, cheio de sonhos de consumo, confortavelmente entorpecido, zumbi da rede Globo, resignado aos infortúnios, temente a Deus, esperançoso de bens de outro mundo, fidelíssimo a quase tudo que o funil cultural lhe impingiu. "Quem não se move não sente as correntes que lhe prendem", diz a Rosa Luxemburgo (se não me engano...). Com a consciência parece ser o mesmo: quem não se esforça por expandi-la, quem não tenta romper as couraças e esticar os próprios horizontes, acaba nem sentindo seu cabresto. E aí... é a festa dos tiranos!



LUCY IN THE SKY WITH DIAMONDS

A transformação operada no cérebro pela ação desta poderosa substância é dificilmente descritível em termos puramente “neutros” e “científicos”: o LSD tem o notável poder de despertar em cientistas uns “ímpetos místicos” e “arroubos poéticos” que não se esperaria de homens tão devotados à razão. Albert Hoffman, cientista suíço que sintetizou a substância ("minha criança maravilha que se tornou criança problema..."), quando tenta descrever a experiência subjetiva de tomar LSD e andar de bicicleta pelos prados da Suíça, descreve-a como algo muito semelhante à experiências místicas vividas na infância, o que é referendado por Aldous Huxley, que, depois de experimentar com a mescalina (substância extraída de um cacto mexicano chamado peiote), relata que ficou a observar as coloridas flores que tinha diante de si “como Adão as deve ter visto no Jardim do Éden”.

A realidade que se “desvela” com o LSD é descrita, no filme The Beyond Within (O Além Interior), como “un-censored reality” ou “naked truth” (“realidade sem censura” e “verdade nua”). O LSD convida-nos a uma visão de mundo em que estar diante da “Verdade Nua-e-Crua” não é uma experiência sórdida, deprimente e aterradora (ou não necessariamente: há as bad trips...); mas que pode ser uma experiência de êxtase, de profunda “iluminação”, de beatitude terrena. Uma criança que experimentou o LSD relata inclusive, e com uma sinceridade de que não dá pra duvidar, que a substância possibilita uma “experiência religiosa mais forte do que ler a Bíblia 6 vezes ou se transformar em Papa”.  

Mas não se trata de uma droga que infantilize, no sentido de retornar o indivíduo a um padrão de comportamento mais “instintivo”, “animalesco”, arcaico. O álcool é uma droga muito mais infantilizante, que parece despertar comportamento imaturos e insensatos em bebuns bastante mamados. O LSD, em contraste, é uma droga para “usuários maduros” e desejosos de maturação – e uma substância que têm, conforme muitos relatos, um efeito a um só tempo rejuvenescedor e amadurescente.

É que amadurecer não é necessariamente distanciar-se o máximo possível da criança: talvez uma parte importantíssima do amadurecer consista em reencontrar muito daquela virgindade de olhar e daquele espanto total diante do mundo que tínhamos em nossos primeiros anos. Os olhos arregalados de uma criança diante da Lua ou das estrelas, sem saber entendê-las, nem de onde vieram, nem quem as grudou no firmamento, nem porque emanam luz e porque nunca nos falam - isso não é algo digno de ser morto em nossa vida adulta!

Nietzsche, por exemplo, não se contenta em somente de ser um leão que ruge, muito adulto e viril, contra o camelo que antes carregava pesos no lombro, resignado, retraído e oprimido sob o fardo por outros transmitido, sob o peso das autoridades passadas, dos preconceitos venerados e das crenças sacralizadas.

Zaratustra faz a criança ser o ideal do leão. Não basta rugir, destruir e depois ficar “pastando”, leoninamente, sobre os escombros. Não basta viver só de oposição, de querela, ofendendo o inimigo, polemizando com o rival. Não basta espezinhar o camelo. Não basta só dizer não e não e não. E a criança é o símbolo do ser que diz sim. Com o olho. Com a consciência. Com todo o seu ser. Diante do espetáculo cósmico inteiro, pede bis.

A criança é a criatividade ainda na fonte, é ainda o frescor pleno de potencialidades de uma mente que ainda não foi “estragada” por doutrinas, ortodoxias, catequisações. A criança é um novo começo. Zaratustra, pois, é esse poeta-dançarino, mais sátiro do que santo, que nos convida a voltar a olhar o mundo com os olhos espantados e cheios de curiosidade de uma criança, cujo arregalamento das pupilas nos deixa comovidos perante o espetáculo de um espanto.

Uma criança que se espanta nos redesperta para o mistério. E os que dormem para o mistério estarão de fato com as consciências vivas? vivacidade de consciência fora do mistério? A convicção ortodoxa de “possuir a verdade”, de “já saber tudo”, não é justamente isso que obstaculiza e trava a consciência em seu processo de expansão?

Terence McKenna, me parece, forneceu a melhor das metáforas para explicar esse “potencial dos psicodélicos”. Segundo McKenna, o que essas substâncias como o THC, o LSD e o DMT realizam em nosso cérebro consiste em “limpar” o nosso sistema operacional: para usar a metáfora informática que ele usa, significa desinstalar o Windows, ou seja, o “sistema operacional” mais comum, mais “normal”, mais comercial, por um sistema operacional espetacularmente novo. Neste novo “modo de operação”, os condicionamentos sociais perdem sua força, como se perdessem sua força de adesão ao nosso “eu” (não à toa muitos usuários e psiquiatras descrevem o processo como uma espécie de “dissolução do eu”, o que para alguns é uma “near-death experience”).

O novo olhar que o LSD ou o DMT nos permitem lançar sobre a realidade circundante consiste exatamente numa ressurreição da novidade. Olhamos para as coisas como se elas fossem novas, em contraste com o tédio e a indiferença com que costumamos lidar com tudo aquilo que chamamos de “banal”, “trivial” e cotidiano. Aquilo que só os maiores dos poetas conseguem realizar em nossas consciências quando os lemos, quando sentimos o impacto de suas imagens, estas substâncias realizam, mas com um potencial amplificado. Elas escancaram as portas da percepção dando um chute químico nos ferrolhos e nas couraças e nos escudos. Tudo nos aparece como se fosse recém-nascido, e nós mesmos nascidos agora para a experiência misteriosa de estar vivo. O presente enfim impera, repleto de cor e de luz, de brisa e de encanto.

Em The Beyond Within, uma moça sob efeito de LSD, segurando uma laranja entre suas mãos, a observa com uma atenção extremamente anormal em relação à atenção que o comum dos mortais normalmente dedica a essa “babaquice sem graça” que é uma fruta. A moça, profundamente fascinada pela cor da laranja, relata, em meio a seu encantamento, uma experiência lapidar: “antes eu jamais havia realmente visto a cor; antes eu vivia num mundo monocromático...” 





TERENCE MCKENNA: A CULTURA É NOSSO SISTEMA OPERACIONAL

O LSD e o THC, é plausível supor e lícito especular, talvez conduzam seus usuários a um certo estado de consciência em que torna-se mais difícil para eles a obediência e a subserviência. Suponham que houvesse uma substância que, nos antípodas da Droga da Obediência imaginada por Pedro Bandeira, fosse uma espécie de... agente da desobediência. Terence McKenna, em uma de suas metáforas mais impressionantes e memoráveis, compara a Cultura a um sistema operacional que estaria instalado em nossos cérebros de modo análogo ao Windows ou Linux que roda em nossos PCs. O hardware que é o cérebro humano, portanto, têm a potencialidade para ser utilizado de mil maneiras, mas acaba sendo “formado” e deformado por programações culturais, condicionamentos de behaviour, tempestades de anúncios e propagandas, ciclones e tsunamis de convites a comprar, a um ponto tal que sua mente outrora virgem transformou-se num imenso cabide onde outros depositaram seus mofados casacos, ternos e japonas.

Segundo McKenna, estas substâncias ditas “psicodélicas”, que também são conhecidas hoje por “enteógenos”, aí incluídos o ácido lisérgico, a mescalina, o DMT etc., teriam a capacidade de realizar no “cérebro” uma “limpeza de sistema operacional”, limpando os nossos olhos das cataratas culturais em nós implantadas. Essas drogas teriam um efeito “descondicionador”, por assim dizer: tudo aquilo que autoridades exteriores a nós ordenaram que decorássemos, tudo aquilo que obrigaram-nos a papaguear, todos os evangelhos dogmáticos que nos foram impostos por potências exteriores, muitas vezes tirânicas em seu absolutismo, recebe um golpe profundo destas substâncias alteradoras da percepção. A consciência, se consegue se “expandir”, é justamente por este alargamento dos horizontes humanos que se dá quando quebramos as jaulas de nosso cárcere cultural. 

Conhecer outras culturas é tão instrutivo, tão urgente, tão crucial e necessário! Pois só assim cessamos de absolutizar nossos próprios costumes, cessamos de adorar apenas nosso próprio país, como fizeram, por décadas e séculos, os papagaios de patriotadas... Há na “psicodelia” um elemento de universalismo que, me parece, consiste na sensação que estas drogas são capazes de despertar de que o sujeito é cidadão do mundo, hospedeiro da natureza, habitante da galáxia, parte do cosmos.

”Parece que a hipótese de trabalho mais satisfatória sobre a mente humana tem que seguir, até certo ponto, o modelo bergsoniano, no qual o cérebro, com seu eu normal associado, age como um mecanismo utilitário para limitar e selecionar o enorme mundo de consciência possível e para canalizar experiências em canais biologicamente lucrativos. Doenças, mescalina, choque emocional, experiência estética e iluminação mística, todos têm o poder, cada um de um modo diferente e em graus variáveis, de inibir as funções do eu normal e sua atividade comum do cérebro, permitindo assim que o ‘outro mundo’ invada a consciência. [...] Pode-se dizer que um homem consiste num Velho Mundo de consciência pessoal e, do outro lado de um oceano divisor, numa série de Novos Mundos. Esses Novos Mundos de um subconsciente nunca podem ser colonizados, raramente são perfeitamente explorados, e em muitos casos ainda esperam o descobrimento.” - Aldous Huxley


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